O que hoje é o Museu da Marioneta, um restaurante e uma associação recreativa, na Madragoa, era há 35 anos um lugar de habitação precária, em que mais de 100 famílias ocupavam as celas, o pátio, o claustro daquele que fora um convento feminino fundado no século XVII e que mais tarde chegou a ser conhecido como o "Grande Hotel da Fome".
Nos séculos XVI e XVII, foram construídos vários conventos na zona de Lisboa que abarca os atuais bairros de Lapa, Madragoa e Santos.
No livro "Uma casa da Lapa", da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, o historiador José Sarmento de Matos relata que a construção dos conventos foi incentivada pelos aristocratas para albergar "com decoro as filhas sem casamento à altura ou os filhos sem hipótese de apanágio", e que em volta se foi alojando a gente do povo em 'casinhotos' pois o seu trabalho era "indispensável para o dia-a-dia de tanto frade, tanta freira e tanto fidalgo".
No final do século XIX, após a extinção das ordens religiosas (1834), houve vários conventos vendidos, que viriam a ser usados para habitação.
No Convento das Bernardas, que tinha sido construído no então Mocambo (nome ancestral do bairro devido a ter muita população proveniente de África, designadamente ex-escravos), o dono alugava as antigas celas a famílias pobres, sobretudo ligadas à faina fluvial e marítima (como vendedeiras de peixe e estivadores).
Nasceria uma comunidade que aí viveria nas décadas seguintes. Em 1943, Leão Penedo escreve "Caminhada", um romance neorrealista que conta a história de Rita, uma mulher viúva que, de canastra à cabeça, vende peixe por Lisboa arrastando consigo o filho mais novo.
"A Rita varria a única divisão de que se compunha a casa. Toda a gente vivia assim no Convento das Bernardas: uma família em cada dois palmos, com o rancho de filharada miúda, empilhados, a discutirem o espaço centímetro e centímetro como carga grossa num porão. Poucos, raros, se entregavam ao luxo de alugar dois ou três compartimentos", conta Leão Penedo, atribuindo a outra personagem o chamar ao convento de "Grande Hotel da Fome".
Em 1990, o convento estava sobreocupado e degradado. Mais de 100 famílias viviam nas antigas celas e os espaços comuns eram usados para cozinhar, estender roupa, brincar. As crianças faziam do claustro campo da bola.
A cargo da Câmara Municipal de Lisboa, as obras de reabilitação e reconversão começaram em 1999, cofinanciadas por fundos europeus - sobretudo através do antigo programa Intervenção Operacional Renovação Urbana, dedicado a infraestruturas, equipamentos e projetos para promoção e consolidação de tecido urbano -, já depois de realizados os levantamentos arquitetónicos, arqueológicos e sócio-habitacionais.
"Este projeto teve uma vertente social muito rica. O edifício era designado pelos bombeiros como sendo uma 'colmeia humana', eram centenas de pessoas, 100 famílias pelo menos. Algumas eram casas maiores, outras era apenas uma cela de freira mais a ampliação, viviam famílias inteiras em 16 metros quadrados", contou à Lusa a arquiteta Teresa Duarte, que coordenou trabalhos deste projeto.
Foram dadas às 100 famílias duas hipóteses: regressar ao edifício após as obras ou serem indemnizadas e refazerem a vida noutro local. Escolheram ficar 34 famílias, a quem foram atribuídas casas consoante os membros do agregado familiar, pagando renda em função dos rendimentos.
As obras incluíram tubagens, esgotos, tetos, reabilitação de estruturas, assim como recuperação de azulejos e pinturas decorativas.
Ao longo do projeto foi descoberto património soterrado, como a chaminé barroca da antiga cozinha do convento, que hoje se encontra a descoberto no espaço do restaurante, as pinturas murais de efeito arquitetónico, e a cisterna original, detentora de um sistema de recuperação de águas pluviais, com a parte externa agora patente no centro do claustro.
A capela do convento, dedicada a Nossa Senhora da Nazaré, guardava as inscrições do Cine-Esperança, um dos primeiros cinemas de Lisboa, aberto em 1924 pelo empresário Santos Malafaia. Hoje, o Museu da Marioneta usa este espaço como auditório e, por cima dos pilares que antecedem o palco, mantêm-se as pinturas das iniciais 'C' e 'E' de Cine-Esperança.
O fadista Natalino de Jesus, de 70 anos, foi criado no convento. A sua avó paterna veio da Murtosa, em Aveiro, e foi para ali morar. A avó trabalhou na descarga do carvão, a mãe nas descargas das traineiras que chegavam à Ribeira de Lisboa e o pai na CUF -- Companhia União Fabril como soldador.
Com os pais, Natalino vivia nas imediações do convento, na Rua Vicente Borga, mas era ali que ava o dia, entre avós, tios e primos.
Recorda que as casas tinham más condições, o quarto de banho, no fundo do corredor, era partilhado e só uma pessoa tinha televisão (e cobrava cinco tostões a quem queria assistir). Era uma comunidade que vivia com problemas, mas também em grande solidariedade.
"Corríamos aquilo tudo, saíamos de casa para brincar e fazíamos tudo, conhecíamos a casa uns dos outros. As pessoas iam trabalhar para a Ribeira e os miúdos ficavam ali, não era preciso pedir especificamente a ninguém, a comunidade tratava disso. 'A tua mãe não veio? Anda cá comer'", exemplifica.
O arquiteto Filipe Lopes, hoje com 92 anos, foi o diretor municipal de Reabilitação Urbana, de 1990 a 2000, responsável pela recuperação e reconversão dos bairros históricos de Lisboa (Alfama, Mouraria, Madragoa, Bairro Alto, Bica, Paço do Lumiar, Ameixoeira, Olivais Velho, Carnide, Pátios e Vilas).
À Lusa, contou que o trabalho nos bairros foi feito respondendo às reivindicações dos moradores, porque ele e as suas equipas perceberam desde cedo que "as pessoas não queriam sair de lá, queriam obras, mas não queriam sair" dos bairros, pois estavam integradas numa "comunidade que tem a sua raiz, a sua identidade, a sua personalidade".
"É daí que também vem o projeto do Convento das Bernardas em que as pessoas ficaram no convento", contou, recordando que o trabalho feito atendeu igualmente a necessidades individuais.
Na reabilitação de uma casa de uma mulher que vivia sozinha, o arquiteto daquele projeto decidiu eliminar um quarto interior para toda a casa ter áreas maiores. Quando, como era costume, foi apresentado o projeto à moradora, esta perguntou: "E onde dorme o meu neto quando vem cá?". A casa foi redesenhada para voltar a ter um segundo quarto.
Segundo Filipe Lopes, o trabalho nos bairros históricos foi "uma luta, uma luta, uma luta", mas os objetivos iniciais foram todos cumpridos graças à "legislação extremamente potente" que se mantinha, um quadro legislativo com raízes no regime estabelecido por Nuno Portas (secretário de Estado da Habitação e Urbanismo nos três primeiros governos provisórios, 1974-1975), no seu modo de pensar a cidade e na "força revolucionária" que ainda existia.
Para Filipe Lopes, apesar das alterações inevitáveis que a intervenção arquitetónica implica, a preocupação de preservar as comunidades foi determinante.
"As pessoas são pessoas quando têm relação com outros, de outra maneira são indivíduos. Uma ideia política qualquer desenvolve-se num grupo, não numa pessoa isolada. E isso é a tendência atual do mundo moderno, tornar-nos em indivíduos, não pessoas, cortar tudo o que é relação entre as pessoas", afirmou.
O geógrafo Gonçalo Antunes, especialista em políticas de habitação em Lisboa, considerou à Lusa o que se fez no Convento das Bernardas um "ótimo modelo de ação", ao ser mantido o uso que as pessoas lhe tinham dado.
"O que temos visto noutros conventos e edifícios importantes do Estado, é que têm vindo a ser convertidos e vendidos para função não habitacional, relacionada com hotelaria ou serviços", atendendo sobretudo ao argumento financeiro, disse.
Por isso, considerou, a intervenção feita no convento é ainda mais importante por acontecer numa zona central de Lisboa, muito pressionada, e deve ser um exemplo para a atualidade.
"Com a muita dificuldade de o à habitação na cidade, as entidades públicas reabilitarem património e arrendarem-no é essencial para o futuro de Lisboa", disse Gonçalo Antunes.
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