Convento das Bernardas, exemplo de realojamento em Lisboa há 30 anos

Mais de 100 famílias viviam no Convento das Bernardas, em Lisboa, nos anos 1990, numa 'colmeia humana' que remontava ao século XIX, até que obras de reconstrução e reabilitação o transformaram num complexo de habitação ível com comércio e serviços.

Reportagem: Convento das Bernardas

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Lusa
09/06/2025 08:11 ‧ há 3 horas por Lusa

País

Lisboa

O que hoje é o Museu da Marioneta, um restaurante e uma associação recreativa, na Madragoa, era há 35 anos um lugar de habitação precária, em que mais de 100 famílias ocupavam as celas, o pátio, o claustro daquele que fora um convento feminino fundado no século XVII e que mais tarde chegou a ser conhecido como o "Grande Hotel da Fome".

 

Nos séculos XVI e XVII, foram construídos vários conventos na zona de Lisboa que abarca os atuais bairros de Lapa, Madragoa e Santos.

No livro "Uma casa da Lapa", da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, o historiador José Sarmento de Matos relata que a construção dos conventos foi incentivada pelos aristocratas para albergar "com decoro as filhas sem casamento à altura ou os filhos sem hipótese de apanágio", e que em volta se foi alojando a gente do povo em 'casinhotos' pois o seu trabalho era "indispensável para o dia-a-dia de tanto frade, tanta freira e tanto fidalgo".

No final do século XIX, após a extinção das ordens religiosas (1834), houve vários conventos vendidos, que viriam a ser usados para habitação.

No Convento das Bernardas, que tinha sido construído no então Mocambo (nome ancestral do bairro devido a ter muita população proveniente de África, designadamente ex-escravos), o dono alugava as antigas celas a famílias pobres, sobretudo ligadas à faina fluvial e marítima (como vendedeiras de peixe e estivadores).

Nasceria uma comunidade que aí viveria nas décadas seguintes. Em 1943, Leão Penedo escreve "Caminhada", um romance neorrealista que conta a história de Rita, uma mulher viúva que, de canastra à cabeça, vende peixe por Lisboa arrastando consigo o filho mais novo.

"A Rita varria a única divisão de que se compunha a casa. Toda a gente vivia assim no Convento das Bernardas: uma família em cada dois palmos, com o rancho de filharada miúda, empilhados, a discutirem o espaço centímetro e centímetro como carga grossa num porão. Poucos, raros, se entregavam ao luxo de alugar dois ou três compartimentos", conta Leão Penedo, atribuindo a outra personagem o chamar ao convento de "Grande Hotel da Fome".

Em 1990, o convento estava sobreocupado e degradado. Mais de 100 famílias viviam nas antigas celas e os espaços comuns eram usados para cozinhar, estender roupa, brincar. As crianças faziam do claustro campo da bola.

A cargo da Câmara Municipal de Lisboa, as obras de reabilitação e reconversão começaram em 1999, cofinanciadas por fundos europeus - sobretudo através do antigo programa Intervenção Operacional Renovação Urbana, dedicado a infraestruturas, equipamentos e projetos para promoção e consolidação de tecido urbano -, já depois de realizados os levantamentos arquitetónicos, arqueológicos e sócio-habitacionais.

"Este projeto teve uma vertente social muito rica. O edifício era designado pelos bombeiros como sendo uma 'colmeia humana', eram centenas de pessoas, 100 famílias pelo menos. Algumas eram casas maiores, outras era apenas uma cela de freira mais a ampliação, viviam famílias inteiras em 16 metros quadrados", contou à Lusa a arquiteta Teresa Duarte, que coordenou trabalhos deste projeto.

Foram dadas às 100 famílias duas hipóteses: regressar ao edifício após as obras ou serem indemnizadas e refazerem a vida noutro local. Escolheram ficar 34 famílias, a quem foram atribuídas casas consoante os membros do agregado familiar, pagando renda em função dos rendimentos.

As obras incluíram tubagens, esgotos, tetos, reabilitação de estruturas, assim como recuperação de azulejos e pinturas decorativas.

Ao longo do projeto foi descoberto património soterrado, como a chaminé barroca da antiga cozinha do convento, que hoje se encontra a descoberto no espaço do restaurante, as pinturas murais de efeito arquitetónico, e a cisterna original, detentora de um sistema de recuperação de águas pluviais, com a parte externa agora patente no centro do claustro.

A capela do convento, dedicada a Nossa Senhora da Nazaré, guardava as inscrições do Cine-Esperança, um dos primeiros cinemas de Lisboa, aberto em 1924 pelo empresário Santos Malafaia. Hoje, o Museu da Marioneta usa este espaço como auditório e, por cima dos pilares que antecedem o palco, mantêm-se as pinturas das iniciais 'C' e 'E' de Cine-Esperança.

O fadista Natalino de Jesus, de 70 anos, foi criado no convento. A sua avó paterna veio da Murtosa, em Aveiro, e foi para ali morar. A avó trabalhou na descarga do carvão, a mãe nas descargas das traineiras que chegavam à Ribeira de Lisboa e o pai na CUF -- Companhia União Fabril como soldador.

Com os pais, Natalino vivia nas imediações do convento, na Rua Vicente Borga, mas era ali que ava o dia, entre avós, tios e primos.

Recorda que as casas tinham más condições, o quarto de banho, no fundo do corredor, era partilhado e só uma pessoa tinha televisão (e cobrava cinco tostões a quem queria assistir). Era uma comunidade que vivia com problemas, mas também em grande solidariedade.

"Corríamos aquilo tudo, saíamos de casa para brincar e fazíamos tudo, conhecíamos a casa uns dos outros. As pessoas iam trabalhar para a Ribeira e os miúdos ficavam ali, não era preciso pedir especificamente a ninguém, a comunidade tratava disso. 'A tua mãe não veio? Anda cá comer'", exemplifica.

O arquiteto Filipe Lopes, hoje com 92 anos, foi o diretor municipal de Reabilitação Urbana, de 1990 a 2000, responsável pela recuperação e reconversão dos bairros históricos de Lisboa (Alfama, Mouraria, Madragoa, Bairro Alto, Bica, Paço do Lumiar, Ameixoeira, Olivais Velho, Carnide, Pátios e Vilas).

À Lusa, contou que o trabalho nos bairros foi feito respondendo às reivindicações dos moradores, porque ele e as suas equipas perceberam desde cedo que "as pessoas não queriam sair de lá, queriam obras, mas não queriam sair" dos bairros, pois estavam integradas numa "comunidade que tem a sua raiz, a sua identidade, a sua personalidade".

"É daí que também vem o projeto do Convento das Bernardas em que as pessoas ficaram no convento", contou, recordando que o trabalho feito atendeu igualmente a necessidades individuais.

Na reabilitação de uma casa de uma mulher que vivia sozinha, o arquiteto daquele projeto decidiu eliminar um quarto interior para toda a casa ter áreas maiores. Quando, como era costume, foi apresentado o projeto à moradora, esta perguntou: "E onde dorme o meu neto quando vem cá?". A casa foi redesenhada para voltar a ter um segundo quarto.

Segundo Filipe Lopes, o trabalho nos bairros históricos foi "uma luta, uma luta, uma luta", mas os objetivos iniciais foram todos cumpridos graças à "legislação extremamente potente" que se mantinha, um quadro legislativo com raízes no regime estabelecido por Nuno Portas (secretário de Estado da Habitação e Urbanismo nos três primeiros governos provisórios, 1974-1975), no seu modo de pensar a cidade e na "força revolucionária" que ainda existia.

Para Filipe Lopes, apesar das alterações inevitáveis que a intervenção arquitetónica implica, a preocupação de preservar as comunidades foi determinante.

"As pessoas são pessoas quando têm relação com outros, de outra maneira são indivíduos. Uma ideia política qualquer desenvolve-se num grupo, não numa pessoa isolada. E isso é a tendência atual do mundo moderno, tornar-nos em indivíduos, não pessoas, cortar tudo o que é relação entre as pessoas", afirmou.

O geógrafo Gonçalo Antunes, especialista em políticas de habitação em Lisboa, considerou à Lusa o que se fez no Convento das Bernardas um "ótimo modelo de ação", ao ser mantido o uso que as pessoas lhe tinham dado.

"O que temos visto noutros conventos e edifícios importantes do Estado, é que têm vindo a ser convertidos e vendidos para função não habitacional, relacionada com hotelaria ou serviços", atendendo sobretudo ao argumento financeiro, disse.

Por isso, considerou, a intervenção feita no convento é ainda mais importante por acontecer numa zona central de Lisboa, muito pressionada, e deve ser um exemplo para a atualidade.

"Com a muita dificuldade de o à habitação na cidade, as entidades públicas reabilitarem património e arrendarem-no é essencial para o futuro de Lisboa", disse Gonçalo Antunes.

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